A lógica por trás do preço: se a demanda é infinita, então o consumidor... espera

A premissa é simples: se uma empresa pode vender cada chip de memória que produz para data centers de Inteligência Artificial com lucros estratosféricos, por que ela continuaria a se preocupar com o mercado consumidor de margens apertadas? A resposta, como estamos descobrindo, é que ela não vai. O resultado é um aumento de preços que beira o absurdo. Segundo o engenheiro e criador de conteúdo Jeff Geerling, um kit de memória DDR5 de 64 GB que custava US$ 209 no início do ano hoje é encontrado por US$ 650. Um aumento de mais de 210%. Não se trata de uma flutuação de mercado, mas de uma reconfiguração completa da cadeia de suprimentos.

A análise dos dados de mercado, como os gráficos do site PC Parts Picker citados por Geerling, confirma o cenário. Pentes de memória DDR4, uma tecnologia mais antiga, saltaram de cerca de US$ 30 para US$ 120. A verdade factual é que os fabricantes de memória, como Hynix, Samsung e Micron, perceberam que podem faturar bilhões a mais dedicando suas linhas de produção exclusivamente aos produtos de IA. Consequentemente, o mercado de varejo foi relegado ao segundo plano.

Efeito dominó: do PC gamer ao Raspberry Pi

A consequência mais visível dessa estratégia corporativa é a decisão da Micron de descontinuar completamente sua popular marca de varejo, a Crucial. Isso significa um concorrente a menos no mercado consumidor, o que, em qualquer análise lógica, leva a menos opções e preços mais altos. Se um dos três maiores fabricantes globais decide que vender para você não vale mais a pena, o sinal é claro: o problema é estrutural.

Mas o impacto não se limita aos entusiastas de PC. O Raspberry Pi, um símbolo da computação acessível, já anunciou aumentos de preço e, curiosamente, introduziu um modelo do Pi 5 com apenas 1 GB de RAM. Uma regressão que, ironicamente, pode forçar desenvolvedores a otimizar seu código, mas que na prática limita o acesso à tecnologia. Empresas menores sofrem ainda mais. A Libre Computer, por exemplo, relatou que um único módulo de memória LPDDR4 de 4 GB agora custa US$ 35, um valor superior à soma de todos os outros componentes de suas placas. A equação é insustentável: ou os preços sobem, ou os produtos desaparecem das prateleiras.

O mito do hardware usado na era pós-bolha

Uma narrativa otimista circula em fóruns: “quando a bolha da IA estourar, teremos uma enxurrada de hardware barato no mercado de usados”. A premissa é tentadora, mas a conclusão é, segundo os fatos apresentados por Geerling, falsa. O hardware que está sendo desenvolvido para os data centers de IA não é o mesmo que você usa em seu computador.

Vamos aos fatos:

  • Memória Especializada: Grande parte da RAM produzida é do tipo HBM (High Bandwidth Memory), que é integrada diretamente aos processadores e GPUs especializados. Ela não pode ser removida ou usada em uma placa-mãe de consumo.
  • Formatos Incompatíveis: Os módulos de memória para servidores possuem formatos e especificações que simplesmente não funcionam em PCs domésticos.
  • Requisitos de Energia e Refrigeração: Os servidores de IA são projetados para operar em ambientes com sistemas de refrigeração líquida e fontes de alimentação industriais. Tentar rodar um desses em casa seria inviável e perigoso.

Portanto, a esperança de montar um PC gamer com peças de um data center desativado é, na melhor das hipóteses, um delírio. O hardware da bolha de IA, se e quando estourar, não será reaproveitável pelo consumidor comum.

Estoque, especulação e um déjà vu de 2020

Para agravar a situação, grandes corporações estão agindo para se proteger, o que acaba por piorar a escassez para todos os outros. A Lenovo, por exemplo, admitiu publicamente que está estocando memória RAM. Essa atitude cria um ciclo vicioso que lembra a crise do papel higiênico no início da pandemia de 2020: a percepção de escassez leva à compra em pânico por quem pode pagar, o que, por sua vez, aprofunda a escassez real. Empresas menores e o consumidor final ficam de mãos abanando, observando os preços subirem enquanto os estoques desaparecem nos depósitos das gigantes.

O cenário é preocupante e não há um final feliz no horizonte. A previsão, baseada na crise global de chips de 2021-2022, é que essa situação pode durar anos. O chamado “imposto da IA” será pago por todos, de forma direta no preço do próximo upgrade ou indireta no custo de câmeras, consoles, tablets e smartphones. A era da computação acessível e da montagem de PCs como um hobby de baixo custo pode estar, infelizmente, com os dias contados.