Num movimento que está sacudindo as fundações do universo maker, a Qualcomm, após adquirir a Arduino, reescreveu silenciosamente os termos de serviço da plataforma, e a comunidade não está nada feliz. As mudanças, descritas como uma quebra total com a filosofia de hardware aberto, concedem à gigante dos chips direitos amplos sobre criações de usuários e proíbem práticas que eram a essência do ecossistema Arduino. A reação foi imediata e dura, com muitos declarando o fim de uma era.
As Novas e Polêmicas Regras do Jogo
A crítica mais contundente veio da Adafruit, influente empresa de hardware open-source de Nova York. Em uma análise que, segundo o portal The Register, foi publicada em uma rede social de negócios, a Adafruit destacou que “as mudanças marcam uma clara quebra com o ethos de hardware aberto que construiu a plataforma”. De acordo com a empresa, os novos termos de serviço e a política de privacidade da Arduino sob a gestão da Qualcomm são preocupantes. Entre os pontos mais criticados, estão:
- Licença Perpétua: A concessão de uma licença “irrevogável e perpétua” sobre qualquer conteúdo que os usuários façam upload para a plataforma.
- Monitoramento de IA: Um monitoramento amplo, no estilo de vigilância, sobre os recursos de inteligência artificial.
- Proibição de Engenharia Reversa: Usuários estão agora explicitamente proibidos de fazer engenharia reversa ou mesmo tentar entender como a plataforma funciona sem permissão prévia da Arduino.
- Retenção de Dados: Nomes de usuário serão retidos por anos, mesmo após a exclusão da conta.
- Ecossistema Global de Dados: Integração de todos os dados dos usuários, incluindo os de menores de idade, ao ecossistema global de dados da Qualcomm.
Basicamente, é como comprar um conjunto de blocos de montar que sempre foi seu para criar o que quisesse e, de repente, o novo dono da fábrica diz que tudo que você construir pertence a ele, e você nem pode mais espiar como os blocos são feitos. Não é exatamente a receita para manter uma comunidade criativa e colaborativa engajada.
A Fúria da Comunidade: “RIP Arduino”
A reação online foi tão rápida quanto um curto-circuito. Em comentários no LinkedIn, citados pelo The Register, a frustração era palpável. “Foi ótimo te conhecer Arduino, descanse em paz. Olá, RP2040 e ESP32, espero que tenhamos um grande futuro juntos”, escreveu Venky Raju, CTO da firma de segurança ColorTokens, já apontando para as alternativas. Frank DeLaTorre, engenheiro de design, foi mais direto: “A Qualcomm não entende nada sobre o espaço Maker. Eles são uma corporação gananciosa que não dá a mínima para a comunidade que o Arduino construiu nos últimos 10+ anos.”
No X, o tom não foi diferente. Usuários como EV_TRAPPER postaram um simples e fatalista: “RIP Arduino! A Qualcomm acabou de destruí-lo”. Philip Torrone, cofundador da Adafruit, resumiu o sentimento de traição em uma declaração ao The Register, descrevendo-o como um “momento Frankenstein”: “a criatura chama por seu criador e descobre que o criador foi substituído por uma corporação que planeja desmontá-la para vender as peças… Eu me pergunto se o monstro clama por Massimo ou por Hernando?”.
Uma História de Bifurcações e Polêmicas
Para entender o peso dessa revolta, é preciso olhar para a história do Arduino, que, ironicamente, nasceu de uma “bifurcação” (ou, no jargão do software, um “fork”). O projeto tem suas raízes no “Wiring”, uma plataforma de código aberto criada em 2003 pelo desenvolvedor colombiano Hernando Barragán para sua tese de mestrado na Itália. Seus orientadores incluíam Massimo Banzi, que mais tarde se tornaria um dos cofundadores do Arduino.
Em 2005, Banzi e outros colegas pegaram o design de código aberto do Wiring, adaptaram para um hardware mais barato (o chip ATMega8) e lançaram o sistema como Arduino. Parece que “forkar” projetos está no DNA da plataforma, mas, pelo visto, o “commit” da Qualcomm não foi aceito pela comunidade. A própria Arduino não é estranha a controvérsias, tendo enfrentado uma batalha por marcas registradas em 2015 entre suas filiais nos EUA e na Itália, embora tenham resolvido a questão um ano depois.
Essa herança de código aberto e colaboração é o que transformou o Arduino em um pilar para estudantes, hobbistas e profissionais. A ideia de que essa liberdade está sendo cerceada por uma gigante da tecnologia é o que alimenta a indignação atual.
O Futuro Incerto da Plaquinha Azul
A aquisição da Arduino pela Qualcomm foi vista como um movimento estratégico para fortalecer a presença da empresa em inteligência artificial de ponta (edge AI). No entanto, ao impor termos tão restritivos, a Qualcomm corre o risco de alienar a base de usuários apaixonada que fez do Arduino o sucesso que ele é hoje. A comunidade já está de olho em alternativas como o Raspberry Pi Pico (com seu chip RP2040) e as placas baseadas no ESP32, que mantêm o espírito de abertura.
O portal The Register informou que tentou contato com os representantes da Arduino para comentar o caso, mas eles não estavam disponíveis para responder. A comunidade maker agora aguarda para ver se a Qualcomm irá recuar diante da pressão ou se este é, de fato, o capítulo final da era dourada do hardware aberto liderada pela icônica plaquinha azul.
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