A Magia Artificial da Coca-Cola Desperta Fúria e Reflexão

Em um mundo que parece girar cada vez mais rápido na órbita da tecnologia, até as tradições mais queridas são reescritas em código binário. Pelo segundo ano consecutivo, a Coca-Cola, arquiteta de algumas das memórias natalinas mais icônicas da publicidade, decidiu mergulhar no universo da Inteligência Artificial para sua campanha de fim de ano de 2025. O resultado, uma série de comerciais intitulada “Holidays Are Coming”, é uma homenagem ao clássico de 1995, mas que, ao invés de aquecer corações, acendeu uma fogueira de controvérsias na internet, questionando os limites entre inovação e a alma da criação humana.

A Magia (Não Tão) Real de 70.000 Clipes

Por trás do verniz cintilante da nova propaganda, há uma complexa operação que revela tanto o avanço quanto as atuais limitações da IA generativa de vídeo. Segundo o Wall Street Journal, a campanha envolveu cerca de 100 pessoas, mas a criação central ficou a cargo de apenas cinco “especialistas em IA” da firma Silverside AI. Em um vídeo de bastidores, narrado por vozes que soam elas mesmas sintéticas, a empresa se orgulha de ter “processado” mais de 70.000 clipes de vídeo em apenas um mês para chegar ao produto final. Um número que soa menos como um feito de eficiência e mais como um testamento da natureza aleatória e ainda imperfeita da tecnologia.

O resultado visual é um espetáculo peculiar. Se no ano passado as críticas focavam em rostos humanos rígidos e rodas de caminhão que desafiavam as leis da física, a versão de 2025 parece ter aprendido uma lição, mas não a correta. Como aponta a reportagem da Futurism, os humanos foram praticamente banidos da tela, substituídos por uma fauna de animais estranhamente antropomórficos, de ursos polares a preguiças — uma escolha, no mínimo, exótica para o imaginário natalino. O único vislumbre humano proeminente é um close-up do rosto hiper-realista do Papai Noel e sua mão, cujos dedos se distorcem brevemente em formas impossíveis. Tudo isso para culminar no slogan: “Real Magic”. Mas que tipo de magia é essa, que nasce de milhares de tentativas e erros de uma máquina, e que nos deixa com uma sensação de estranheza e vazio?

O Fantasma na Máquina Publicitária

A reação do público não tardou e foi implacável. Termos como “sem alma”, “assustador” e pedidos de “boicote” inundaram as redes sociais, conforme destacado pela Euronews. A crítica central vai além da estética: aponta para a decisão de uma corporação multibilionária de substituir o trabalho de animadores, diretores de arte e criativos por algoritmos, em um aparente movimento de corte de custos que desvaloriza o trabalho humano. Um usuário na plataforma X resumiu o sentimento geral: “vocês são uma empresa multibilionária. paguem animadores de verdade. isso é nojento.”

Em defesa da estratégia, Pratik Thakar, chefe de IA generativa da Coca-Cola, afirmou que “o gênio saiu da garrafa e não dá para colocá-lo de volta”. A frase, carregada de um determinismo tecnológico, convida a uma reflexão mais profunda. Será que o gênio realmente saiu, ou estamos nós, como sociedade, escolhendo deliberadamente abrir a garrafa, fascinados por seu brilho, sem ponderar sobre os desejos sombrios que ele pode conceder? A questão não é se a IA pode criar, mas se o que ela cria consegue ressoar com a complexa tapeçaria da experiência humana.

O Futuro da Propaganda: Entre Sora e Kodak

O debate se estende para o futuro da indústria criativa como um todo. Para Ricardo Pupo Larguesa, apresentador do Desbugados, professor e empreendedor tech, a mudança é iminente, mas com nuances. “A IA veio, e veio para ficar. A geração de vídeos está evoluindo numa velocidade impressionante, mas não acho que será uma ameaça ao cinema porque o apelo humano das celebridades é muito forte. Porém, o mercado publicitário deve mudar radicalmente. Figurantes e produtores devem sofrer com as mudanças neste mercado”, analisa Pupo. A publicidade, com seus formatos curtos e alto volume de produção, parece ser o campo de testes perfeito — e talvez a primeira vítima — dessa revolução.

A encruzilhada histórica é bem definida por Rodrigo Salgado, diretor da T2S Tecnologia e também apresentador do Desbugados: “É inevitável esse movimento! Cada vez mais iremos mover os mercados (isso mesmo, no plural) para esta direção. Aí teremos que decidir se nos comportaremos como Sony ou Kodak.” A analogia é poderosa, lembrando-nos da empresa que inventou a câmera digital, mas faliu por não acreditar em sua própria criação, enquanto outras se adaptaram e prosperaram. A questão que paira no ar é se a adaptação significa uma substituição cega ou uma integração inteligente, que aumente a capacidade humana em vez de descartá-la.

Conclusão: Um Brinde ao Vale da Estranheza?

A campanha da Coca-Cola se torna, assim, menos um comercial e mais um manifesto sobre o tempo em que vivemos. Ela expõe o conflito entre a busca incessante por eficiência e a necessidade de autenticidade. O fato de que mesmo com modelos avançados como Sora 2 da OpenAI ou Veo 3 do Google, as produções ainda se escondem atrás de clipes curtos e estilos caricatos para evitar o escrutínio, mostra que a tecnologia ainda não domina a linguagem da alma. Ao vermos uma marca construída sobre a nostalgia e a “magia real” abraçar uma musa artificial, somos forçados a questionar: em nossa jornada rumo ao futuro, que fragmentos de nossa humanidade estamos dispostos a deixar para trás? Quando um algoritmo finalmente aprender a replicar perfeitamente uma memória de Natal, essa memória ainda nos pertencerá?