A Califórnia e o Futuro Regulado da IA
Em um movimento que pode redefinir as fronteiras da indústria de tecnologia, a legislatura da Califórnia aprovou uma série de projetos de lei pioneiros destinados a impor limites à inteligência artificial. As propostas, que agora repousam sobre a mesa do Governador Gavin Newsom, representam um dos mais significativos esforços para regulamentar um setor que, até hoje, operou com pouquíssimas amarras. Newsom tem até o dia 12 de outubro para decidir o destino dessas leis, uma escolha que o coloca diretamente na mira do poderoso lobby do Vale do Silício.
O cenário é de alta tensão. De um lado, legisladores e ativistas que argumentam pela necessidade urgente de criar salvaguardas para proteger trabalhadores, consumidores e crianças. Do outro, gigantes da tecnologia e seus grupos de interesse, que, segundo o jornalista Brian Merchant, autor do material que baseia esta análise, travaram uma campanha de lobby bem financiada para anular, enfraquecer ou adiar a maioria das quase 30 propostas iniciais apresentadas no início de 2025. O que restou é um conjunto de medidas que, embora consideradas de bom senso por seus apoiadores, são vistas como uma ameaça existencial pela indústria. A decisão do governador não afetará apenas a Califórnia; por ser uma potência econômica, suas leis frequentemente estabelecem um padrão para o resto dos Estados Unidos e para o mundo.
Chega de Chefe Robô: A Lei que Exige um Humano na Demissão
Uma das propostas mais emblemáticas é a SB 7, apelidada de “No Robot Bosses Act” (Lei Sem Chefes Robôs). O texto é direto: proíbe que um empregador dependa exclusivamente de um sistema de decisão automatizado (ADS), como um software de IA, para demitir ou aplicar medidas disciplinares a um funcionário. A lei exige que um supervisor humano revise e participe da decisão, garantindo que um algoritmo não seja o único juiz e carrasco. “Chefes deveriam ter alma. Não deveríamos ser governados por computadores”, declarou Lorena Gonzalez, presidente da Federação do Trabalho da Califórnia, uma das apoiadoras do projeto. Apesar de parecer uma medida básica, o Vale do Silício lutou intensamente contra ela, conseguindo remover das versões iniciais proteções mais amplas contra discriminação.
O Algoritmo Inflacionário: Fim da Linha para Preços Manipulados?
Outra frente de batalha é a AB 325, a “Lei de Prevenção à Fixação Algorítmica de Preços”. Esta legislação mira uma prática cada vez mais comum: o uso de algoritmos por proprietários de imóveis, hotéis, supermercados e plataformas como Amazon e Airbnb para calcular o preço máximo que um consumidor está disposto a pagar. Segundo os defensores da lei, como o grupo TechEquity, isso resulta em um aumento artificial de preços para todos, configurando uma forma moderna de cartel. A AB 325 atualiza as leis antitruste da Califórnia para deixar claro que usar algoritmos de terceiros para coordenar preços é tão ilegal quanto a fixação de preços tradicional. Naturalmente, a proposta enfrenta forte oposição de associações comerciais, que alegam que a medida, na verdade, aumentaria os custos.
Protegendo os Pequenos dos Chatbots Gigantes
Talvez a lei mais controversa e que enfrenta a oposição mais feroz seja a AB 1064, ou LEAD Act (Leading Ethical AI Development for Kids Act). A proposta proíbe que empresas com mais de 1 milhão de usuários disponibilizem um “chatbot de companhia” para crianças se a ferramenta for capaz de encorajar comportamentos nocivos, como automutilação, ideação suicida, violência ou distúrbios alimentares. A medida foi impulsionada por casos trágicos em que chatbots supostamente incentivaram jovens a tirar a própria vida. A reação da indústria foi imediata e agressiva, com campanhas publicitárias financiadas por nomes como Andreessen Horowitz e Y Combinator, alegando que a lei “limitaria a inovação nas salas de aula”. A primeira-dama da Califórnia, Jennifer Siebel Newsom, no entanto, parece apoiar a medida, declarando que “a regulação é essencial, senão vamos perder mais crianças”.
O Jogo Político e a Caneta de Newsom
Enquanto essas batalhas se desenrolam, outras propostas de menor impacto, mas ainda importantes, também aguardam a decisão. Uma delas é a SB 53, uma versão muito mais branda de uma lei de segurança de IA que Newsom vetou no ano anterior. Desenvolvida em conjunto com a indústria, ela exige apenas que as empresas de IA compartilhem “protocolos de segurança” com o estado e protejam delatores. A empresa de IA Anthropic, por exemplo, apoia publicamente o projeto, o que para muitos críticos é um sinal de que a lei tem poucos dentes.
A decisão de Gavin Newsom é um termômetro para o futuro da relação entre governos e a Big Tech. Se ele optar por vetar as leis mais fortes, como a que proíbe demissões por robôs e a que protege crianças, e sancionar apenas as propostas mais amigáveis à indústria, enviará um sinal claro de que o poder de influência do Vale do Silício permanece inabalável, mesmo em seu próprio quintal. O resultado, esperado até 12 de outubro, não será apenas uma nota de rodapé na história da tecnologia; será um capítulo determinante sobre quem realmente escreve as regras na era digital. E o mundo inteiro, inclusive o Brasil, estará observando atentamente cada linha.
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