O que é uma comunidade sem sua memória?

Onde residem as conversas, as piadas internas, os momentos de descoberta que tecem a tapeçaria de um grupo? Para o Hack Club, uma organização sem fins lucrativos dedicada a inspirar adolescentes no mundo da programação, essa memória digital vivia no Slack. Vivia, até o momento em que a própria plataforma que abrigava sua história ameaçou apagá-la com um clique, em uma demonstração fria de poder corporativo que nos força a questionar: a quem pertencem, de fato, nossas vidas digitais?

O episódio, que se desenrolou publicamente, começou como um simples e-mail e escalou para uma crise de confiança. Segundo o relato de Mahad Kalam, membro do Hack Club, a organização foi informada que seu plano anual saltaria de US$ 5.000 para US$ 200.000. O ultimato era ainda mais severo: tinham menos de uma semana para concordar e pagar uma parcela inicial de US$ 50.000, ou seu workspace e todo o histórico de mensagens seriam permanentemente deletados. Uma sentença de morte digital para uma comunidade construída ao longo de quase 11 anos.

O Ultimato Digital: Pague ou Desapareça

A relação entre o Hack Club e o Slack parecia harmoniosa. Conforme detalhado no post de Kalam, a ONG pagava sua taxa anual de US$ 5.000, um valor considerado justo pelo serviço. A tranquilidade, no entanto, foi quebrada por uma notificação que soou mais como uma extorsão. De acordo com Kalam, o Slack, de propriedade da gigante Salesforce (uma empresa avaliada em US$ 230 bilhões), usou seu poder de forma desproporcional. “Essencialmente, a Salesforce (...) está coagindo uma pequena organização sem fins lucrativos para adolescentes, fornecendo menos de uma semana para desembolsar uma quantia de dinheiro bastante massiva, ou arriscar cortar todas as nossas comunicações. Isso é absurdo”, desabafou Kalam em sua publicação.

O prazo exíguo não era apenas uma pressão financeira; era, nas palavras dele, uma “catástrofe” logística. A ameaça colocou dezenas de voluntários em uma corrida desesperada contra o tempo para migrar anos de conhecimento institucional, reconstruir integrações e salvar o que podiam da sua própria história. O custo de oportunidade dessa migração forçada, segundo ele, foi “simplesmente impressionante”.

A Fúria da Colmeia e a Mão Estendida (Tardiamente)

A publicação de Kalam não ecoou no vazio. Ela explodiu em plataformas como Hacker News e X (antigo Twitter), catalisando uma onda de indignação na comunidade de tecnologia. A narrativa era irresistível: um Golias corporativo tentando esmagar um Davi comunitário. A pressão pública foi tão intensa que, como relatado tanto por Kalam quanto pelo site The Register, a própria CEO do Slack, Denise Dresser, entrou em contato com o Hack Club. Ela ofereceu “colocar as coisas no lugar”, com uma proposta que, segundo Kalam, era até melhor do que o acordo original de US$ 5.000.

Mas seria o suficiente? Um pedido de desculpas, mesmo que vindo do mais alto escalão, pode reconstruir a confiança que foi pulverizada? A intervenção da CEO foi um ato de boa vontade ou um simples exercício de controle de danos após a estratégia agressiva ter sido exposta à luz do dia? A resposta do Hack Club a essas perguntas retóricas foi um movimento, não uma palavra.

O Êxodo para a Soberania Digital

Mesmo com a nova e generosa oferta sobre a mesa, o dano já estava feito. A ferida não era financeira, mas filosófica. O Hack Club percebeu que sua existência digital estava à mercê de uma entidade externa, cujas prioridades poderiam mudar a qualquer momento, com um simples e-mail. A decisão, portanto, foi inevitável: eles estavam de mudança. A nova casa? Mattermost, uma plataforma de código aberto que permite auto-hospedagem.

A escolha não foi por uma interface melhor ou por um preço mais baixo, mas por um princípio fundamental: a posse. Ao migrar para o Mattermost, o Hack Club não estaria mais alugando um espaço; estaria construindo sua própria casa digital, onde eles detêm as chaves, as paredes e, mais importante, as memórias contidas nela. “Esta provação nos fez pensar mais profundamente sobre confiar dados a SaaS externos e garantir que possuímos nossos dados será definitivamente uma prioridade muito grande daqui para frente”, concluiu Kalam. É uma lição que ecoa para além dos corredores do Hack Club, servindo como um alerta para qualquer empresa, comunidade ou indivíduo que constrói sua vida sobre fundações digitais que não controla.

No fim, a ameaça do Slack pode ter sido o empurrão que a comunidade precisava. Eles não apenas salvaram sua história da exclusão, mas também a reclamaram para si. A saga do Hack Club se transforma, assim, em um manifesto moderno sobre a importância da soberania digital em uma era onde somos cada vez mais inquilinos em um mundo de proprietários de dados. E nos deixa com uma reflexão final: se suas memórias digitais fossem colocadas sob resgate, você teria para onde fugir?