O Nordeste virou o Vale do Silício?
Esqueça a imagem de que a internet vive em uma nuvem etérea. A verdade, muito mais fascinante, é que ela tem um endereço físico, com cabos, servidores e muita, mas muita energia. E um desses novos endereços postais do mundo digital está se consolidando sob o sol do Ceará. O estado nordestino, antes conhecido principalmente por suas praias, está se transformando discretamente em um dos pilares da infraestrutura de dados do Brasil, pronto para se tornar o segundo maior polo do país, atrás apenas de São Paulo.
A ascensão não é por acaso. É um movimento estratégico que envolve bilhões de reais, gigantes da tecnologia e uma geografia abençoada. Com projetos colossais em andamento, o Ceará deixa de ser apenas um ponto no mapa para se tornar um nó central na teia que conecta o Brasil ao resto do mundo.
A Conexão do Futuro na Praia do Futuro
Em Fortaleza, o nome da famosa praia nunca fez tanto sentido. É lá que a Tecto, braço de infraestrutura digital do grupo BTG, está finalizando seu terceiro data center, batizado de 'Mega Lobster'. Com inauguração prevista para outubro, o projeto injeta R$ 550 milhões na economia local para entregar uma capacidade inicial de 10 MW, que pode ser expandida para 20 MW. Essa nova estrutura se soma aos 20 MW que a empresa já instalou na capital cearense apenas em 2024, mostrando o ritmo acelerado da expansão.
De Ventos e Gigabytes: O Projeto Titânico
Se o projeto em Fortaleza é grande, o que está sendo construído em Caucaia, na região metropolitana, é de uma escala quase faraônica. A Casa dos Ventos, uma gigante da energia renovável, está erguendo um complexo que abrigará, entre outros, os servidores da popular rede social TikTok. Os números são impressionantes: o investimento na construção chega a R$ 12 bilhões, com outros R$ 38 bilhões previstos a serem gastos pelos clientes na importação de equipamentos.
A capacidade inicial do complexo será de 300 MW, um número tão expressivo que, sozinho, representa um aumento de 30% em toda a capacidade de processamento de dados do Brasil. É como construir uma nova espinha dorsal digital para o país em pleno sertão.
Por que o Nordeste? A Receita do Sucesso Cearense
Mas por que o Ceará? Segundo Francisco Antonio Martins Barbosa, presidente da Empresa de Tecnologia da Informação do Ceará (Etice), em declaração à Folha de S.Paulo, a resposta está em uma combinação de fatores quase perfeita:
- Geografia Estratégica: O Ceará é o ponto do Brasil mais próximo dos Estados Unidos, Europa e África, o que encurta a distância que os dados precisam viajar e melhora a velocidade das conexões.
- Infraestrutura Submarina: Nada menos que 16 cabos submarinos de fibra óptica chegam ao litoral cearense, transformando o estado na principal porta de entrada e saída de dados do país.
- Custo e Energia: Terrenos mais acessíveis que os de São Paulo e Rio de Janeiro, combinados com um forte investimento em energia eólica, tornam a operação mais barata e sustentável. As turbinas, inclusive, são fabricadas localmente em Aquiraz.
O 'Calcanhar de Aquiles' Tropical
Construir a infraestrutura do futuro, no entanto, não vem sem seus desafios únicos. Um dos maiores obstáculos é a mão de obra. “Hoje, nós buscamos, no Ceará, profissionais experientes na construção de hospitais, que tem demandas similares, e os estamos treinando”, explicou Edwin Eduardo Serrano Sanchez, gerente de operações da Tecto. A obra do Mega Lobster, por exemplo, teve um pico de 400 trabalhadores, mas sua operação contínua exigirá uma equipe altamente técnica de cerca de 40 pessoas.
Além das pessoas, há a natureza. A proximidade com o mar exige que os equipamentos recebam tintas especiais e reforço contra a maresia. As estruturas precisam de barreiras para conter a areia e um pesado isolamento acústico para abafar o ruído dos geradores, que podem atingir ensurdecedores 110 decibéis.
O Barulho do Progresso e a Voz da Resistência
Apesar do otimismo do governo e das empresas, o avanço dos data centers não é celebrado por todos. No início de agosto, indígenas do povo Anacé ocuparam a sede da Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (Semace) para protestar contra o projeto da Casa dos Ventos em Caucaia, alegando não terem sido consultados. Questiona-se também o processo de licenciamento ambiental, que, segundo a reportagem, segue as mesmas regras aplicadas a um shopping center.
O professor Alberto Sampaio Lima, da Universidade Federal do Ceará (UFC), pondera que a regulamentação é de competência municipal, mas que o estado acompanha o debate. Na Praia do Futuro, o clima parece mais tranquilo. “A prefeitura nos avisou da construção e tudo transcorreu sem problemas”, afirmou Sereno Luiz, funcionário de um quiosque local, à reportagem. A situação expõe a complexa balança entre desenvolvimento tecnológico, impacto ambiental e direitos sociais.
O Novo Pilar Digital do Brasil
Entre investimentos bilionários e tensões locais, o Ceará se firma como um protagonista na infraestrutura digital do Brasil. O estado não está apenas construindo prédios cheios de servidores; está solidificando seu papel como um guardião físico do nosso mundo cada vez mais virtual. O futuro da internet brasileira, ao que tudo indica, passa cada vez mais pelo Nordeste.
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