Google e Mozilla querem aposentar o XSLT e a web legada pode quebrar

Em uma movimentação que está agitando os bastidores do desenvolvimento web, Google e Mozilla, as empresas por trás do Chrome e do Firefox, respectivamente, iniciaram discussões para remover o suporte nativo ao XSLT. A sigla, que significa Extensible Stylesheet Language Transformations, representa uma tecnologia veterana usada para transformar documentos XML diretamente no navegador. A justificativa das gigantes da tecnologia se baseia em dados de baixo uso e em preocupações com a segurança de códigos antigos. No entanto, para uma parte significativa da comunidade, a decisão pode significar a quebra de uma infraestrutura digital silenciosa, mas essencial, que vai de sistemas governamentais a equipamentos médicos.

O XSLT morreu ou só esqueceram de regar a planta?

Para quem não viveu a era de ouro do XML, vamos desbugar o conceito. Se você possui dados estruturados em um arquivo XML e quer apresentá-los de diferentes maneiras — como uma página HTML, uma fatura em PDF ou até outro XML —, então o XSLT funciona como uma folha de estilo mágica. Ele aplica regras de transformação do lado do cliente, ou seja, no navegador do usuário, sem a necessidade de uma nova requisição ao servidor. Pense nele como um camaleão de dados.

No início dos anos 2000, o XSLT foi um recurso poderoso. Segundo o The New Stack, os primeiros sites de e-commerce o utilizavam para converter catálogos de produtos em páginas web, e até o Google Maps dependia dele para renderizar seus mapas em diferentes navegadores. Hoje, seu uso é menos visível, mas ainda presente. A tecnologia é a espinha dorsal de sistemas de publicação digital, arquivos de documentos históricos, registros legais e até na geração de faturas personalizadas. Ele também é fundamental para muitos dispositivos embarcados, como roteadores e equipamentos de telecomunicações, que usam sua eficiência para exibir painéis de controle em interfaces web com recursos de hardware limitados.

O problema é que, enquanto o padrão XSLT evoluiu para a versão 3.0 — adicionando suporte a JSON, streaming e outras modernidades —, os navegadores permaneceram estacionados na versão 1.0, de 1999. A inovação parou, e a planta começou a secar por falta de investimento.

A Lógica dos Gigantes: Se ninguém usa, então desligamos

A lógica do Google para propor a remoção é, em sua superfície, impecável. Dados do HTTP Archive, que analisa os principais sites da web, indicam que apenas 0,001% das páginas acionam o processamento de XSLT. Em 2013, esse número já era baixo, na casa dos 0,02%. Do ponto de vista de alocação de recursos, a conta não fecha. Manter uma tecnologia complexa e raramente usada, que depende de bibliotecas antigas como a libxslt e a libxml2, gera um passivo de segurança. Conforme relatado pelo The New Stack, bugs de segurança foram encontrados recentemente nessas bibliotecas, e o antigo mantenedor da libxslt chegou a descrever o trabalho como “o mais ingrato e frustrante” de sua vida, devido à falta de apoio dos grandes players que a utilizam.

A posição oficial do Chrome é que investir na melhoria do XSLT “não é a maneira certa de gastar nossos recursos limitados”. A proposta, portanto, é substituir o suporte nativo por alternativas: um polyfill (um código que os desenvolvedores teriam que adicionar aos seus sites) ou uma extensão de navegador que os usuários precisariam instalar. Se o recurso é de nicho, então que seus usuários arquem com a manutenção. A lógica parece fria, mas pragmática.

O Contra-Argumento: Se os dados estão errados, a conclusão é falsa

A comunidade de defensores do XSLT, no entanto, contesta a premissa fundamental. O argumento é que os dados de uso são falhos. Muitas organizações, especialmente em setores corporativos e governamentais, bloqueiam a telemetria do navegador por razões de segurança e privacidade. Consequentemente, o uso intenso em intranets e sistemas internos simplesmente não aparece nas estatísticas. A analista Kate Holterhoff, da RedMonk, resumiu o dilema perfeitamente em uma citação ao The New Stack: “Um lado conta visualizações de página; o outro, registros de pacientes. Ambos estão certos, e esse é o problema.”

A remoção do XSLT impactaria diretamente sistemas legados que não podem ser facilmente reescritos. Pense em sistemas de prontuários médicos, plataformas de informações parlamentares (o Congresso dos EUA e o Parlamento Europeu usam a tecnologia) ou painéis de controle de equipamentos industriais. Além disso, há um argumento forte sobre o papel do XSLT na web aberta. Muitos sites e blogs usam a tecnologia para estilizar feeds RSS e sitemaps, transformando dados brutos em páginas legíveis para humanos. Remover essa capacidade é visto por muitos como mais um golpe contra um ecossistema descentralizado, em um momento em que a web aberta tenta competir com os “jardins murados” das grandes plataformas.

O Futuro: Um Remendo ou uma Ressurreição?

A discussão não é apenas sobre manter ou remover. É sobre o potencial perdido. Desenvolvedores como Noah Marples, citado pelo The New Stack, argumentam que o XSLT 3.0, com sua capacidade de manipular JSON e HTML de forma declarativa e poderosa, “parece ter sido feito expressamente com a web moderna em mente”. Ele destaca que seletores complexos, triviais no XSLT desde 1999, levaram décadas para serem implementados em CSS, como o :has().

A ironia atinge seu ápice com a ascensão da IA generativa. Jean Paoli, um dos coeditores da especificação XML original e hoje CEO da Docugami, afirmou que remover o XSLT agora é uma decisão “surda ao que acontece no mundo”. Ele explica que o XML é, hoje, uma das linguagens mais eficientes para interagir com LLMs, e que precisaríamos de “mais, e não menos, maneiras de transformar XML no navegador”. A proposta do Google de oferecer um polyfill é vista como um remendo que transfere a responsabilidade, aumenta a complexidade para desenvolvedores e pode criar novos problemas de segurança se os usuários precisarem escolher a extensão correta em uma loja de aplicativos.

Um Debate Maior que um Padrão Web

No final das contas, o debate sobre o XSLT transcende a própria tecnologia. Ele expõe uma tensão fundamental na governança da web. Como destacou Robin Berjon, ex-editor da especificação HTML, a comunidade varreu para debaixo do tapete a questão do financiamento dos navegadores por décadas. A influência desproporcional do Google, que financia grande parte desse ecossistema, inevitavelmente molda as prioridades. Tecnologias que não se alinham às tendências atuais ou aos modelos de negócio dominantes, mesmo que funcionais, correm o risco de serem abandonadas.

Conforme apontou Brian Kardell, da Igalia, é uma pergunta razoável para os fabricantes de navegadores fazerem, mas o processo para chegar a uma resposta é fundamental. A decisão sobre o futuro do XSLT, que ainda está em seus estágios iniciais no consórcio WHATWG, definirá um precedente. Será um sinal de como a web moderna tratará seu passado: como um legado a ser preservado ou como um peso a ser descartado em nome da otimização e da segurança.