Uma Ponte para o Código Aberto ou uma Alfinetada na Concorrência?

A diplomacia no mundo do software é um jogo complexo, e a Microsoft acaba de fazer uma jogada de mestre. Durante o Open Source Summit Europe, em 25 de agosto de 2025, a empresa anunciou a doação de seu projeto DocumentDB para a Linux Foundation. Na prática, a Microsoft está entregando as chaves de sua tecnologia para uma entidade neutra, com o objetivo declarado de criar um padrão aberto para bancos de dados de documentos, algo semelhante ao que o ANSI SQL representa para o universo relacional. A iniciativa coloca o DocumentDB sob a licença permissiva MIT, um sinal claro de que o convite para a festa é aberto a todos, sem restrições.

Contudo, por trás dessa diplomacia, há uma clara mensagem para a concorrência. A decisão é amplamente interpretada como uma resposta direta à MongoDB, que em 2018 adotou a licença SSPL (Server Side Public License). Segundo o portal The Register, a SSPL gerou controvérsia por exigir que provedores de nuvem que oferecessem o MongoDB como serviço liberassem o código-fonte de toda a sua infraestrutura relacionada. Gigantes como AWS, Google e a própria Microsoft viram isso como uma barreira protecionista. Ao optar pela licença MIT, o DocumentDB segue o caminho oposto: liberdade total para usar, modificar e distribuir o código, sem obrigações de retorno. É uma aposta na interoperabilidade total, construindo pontes onde outros ergueram muros.

Afinal, o que é o DocumentDB?

Para entender o impacto dessa doação, é preciso desbugar o que é o DocumentDB. Pense nele como um tradutor universal entre dois mundos que, historicamente, não conversavam tão bem: o flexível universo NoSQL, popularizado pelo MongoDB, e o robusto e confiável ecossistema relacional do PostgreSQL. O projeto nasceu dentro da Microsoft como um conjunto de extensões para o PostgreSQL, projetadas para entender e processar modelos de dados BSON (Binary JavaScript Object Notation) e executar operações de consulta típicas do MongoDB.

Com a adição de uma camada de transição de protocolo, ele evoluiu para uma solução totalmente compatível com MongoDB. Em termos simples, um desenvolvedor pode usar as ferramentas e o conhecimento que já possui do ecossistema MongoDB, mas por baixo dos panos, quem armazena e gerencia os dados é o PostgreSQL. “Esta medida reflete uma mudança concreta em como construímos e governamos o projeto daqui para frente”, afirmou Kirill Gavrylyuk, vice-presidente da Microsoft, em comunicado oficial. É a busca pela flexibilidade do NoSQL com a confiabilidade de um sistema que, como disse Spencer Kimball, CEO da Cockroach Labs, “resistiu ao teste do tempo por sua tremenda versatilidade e extensibilidade”.

A Reação do Ecossistema: Apoio em Massa e um Pouco de Tretas

A resposta da comunidade de tecnologia foi imediata e majoritariamente positiva. A nova casa do DocumentDB na Linux Foundation já nasce com o apoio de um verdadeiro time de Vingadores da tecnologia, incluindo:

  • AWS
  • Cockroach Labs
  • Google
  • Microsoft
  • Rippling
  • SingleStore
  • Snowflake
  • Supabase
  • Ubicloud
  • Yugabyte

Esse apoio massivo sinaliza um desejo do mercado por um padrão mais aberto e colaborativo. A história, no entanto, tem mais camadas. De acordo com o The Register, a criação de uma alternativa aberta ao MongoDB não é nova. Peter Farkas, CEO da FerretDB, relatou em uma publicação que sua empresa, ao criar um produto compatível, sofreu ameaças de um executivo da MongoDB, culminando em um processo de patente em maio de 2025. “No final daquela ligação, eu disse a eles que a indústria inevitavelmente se uniria para criar o padrão aberto que eles se recusaram a fornecer”, escreveu Farkas. “Hoje, o mercado falou”.

Procurada pelo The Register, a MongoDB respondeu, afirmando que a solução da Microsoft “ainda depende do Postgres e ainda tem todas as desvantagens de um banco de dados relacional”. A empresa também ressaltou que sua parceria mais ampla com a Microsoft nunca esteve tão forte, uma declaração diplomática que tenta separar a competição no nível do produto da colaboração corporativa.

Um Novo Padrão para a Comunicação de Dados

A transferência do DocumentDB para a Linux Foundation é mais do que uma simples doação de código. É um movimento geopolítico no mapa da tecnologia de dados, estabelecendo um território neutro para a colaboração e a inovação. Ao unir a compatibilidade com o ecossistema MongoDB à fundação sólida do PostgreSQL, a Microsoft e seus aliados não estão apenas criando um novo produto, mas propondo um novo protocolo de comunicação para o futuro dos bancos de dados de documentos. A mensagem é clara: em um mundo conectado, a interoperabilidade não é apenas uma vantagem técnica, é uma necessidade estratégica. E, aparentemente, a melhor forma de construir o futuro é em conjunto e com as portas abertas.